Escrevo por cima de palavras que foram apagadas. Elas não serviram para transmitir o que era preciso, foram eliminadas. Seus restos encontram-se enterrados nessas páginas, só vejo sombras e nada mais. Não houve testemunhas desse extermínio feito por mim e minha cúmplice, a borracha. Não há provas, nem documentos; então, não há crime.
Posso ficar tranqüilo, não serei condenado, nem apontado por famílias órfãs de suas palavras queridas. Imaginem como seria minha situação no tribunal: diversas palavras soltas acusando-me de acabar com a coesão e coerência, destruir seus parentes.
- Cadê a palavra “não”? - indagaria uma inconsolável palavra “nunca”.
- Não sei, ela sumiu do nada - eu responderia cinicamente, sendo observado atentamente pela “mentira”.
- Não sei, ela sumiu do nada - eu responderia cinicamente, sendo observado atentamente pela “mentira”.
O juiz “por que” passaria por maus momentos - coitado. Meu advogado, da família dos adjetivos, destilaria argumentos a meu favor, me qualificaria ao extremo. Do outro lado, na acusação, teria que me deparar com o advogado da família dos advérbios, que tentaria modificar a opinião do juiz e dos jurados, verdadeiros verbos. Esses jurados, aliás, tentariam desvendar alguma ação, estado ou qualidade que pudessem me condenar ou livrar-me da pena.
Mas, como comentei, crime sem provas não dá em nada. Ainda mais no “Brasil”. Essa palavra grandiosa (apesar das seis letras), mas tão rica de exemplos de crimes sem punição. Por isso, posso tranqüilizar-me na cama quente. Vivemos num país democraticamente impune, para qualquer tipo de crime.
Só tenho medo, na verdade, da dona gramática, uma senhora cheia de complexidades, que amedontra seus subordinados. No quintal de dona gramática, ninguém se sobressai. Basta um escorregão e pronto, ela esfrega na cara o erro cometido. Em seu terreno nenhum delito - o menor que seja - passa impune, ela castiga mesmo. E não há hierarquia nem privilégios, basta estar vivo e se comunicando para ser surpreendido por leis que ela impõe com autoridade. Não há um que não se assuste com seu poder.
Nosso Brasil poderia aprender um pouco com essa senhora. Quem sabe não respeitaríamos um pouco mais as leis e, até mesmo, temeríamos ser desmascarados da fantasia que usamos para driblar os códigos vigentes?! Seria a linguagem e suas regras ensinando uma imensa nação a crescer.