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quarta-feira, 14 de maio de 2014

Vizinha do 61.

Há um ano moro sozinho e, desde então tenho observado com mais calma os fatos que acontecem ao meu redor. No 61, logo aqui em cima, mora uma senhora sozinha. Deve ter uns setenta e alguma coisa e, coitada, sofre de problemas psicológicos, fruto da idade - e de abandono também. O aspecto é de mulher sofrida, corpo magro, rosto triste e com as expressões faciais abatidas. O olhar perdido denuncia as restrições psicológicas, de quem jamais poderia morar sozinha.

(Imagem retirada do site: http://goo.gl/yhPbGm)

Lá de cima ela joga tudo - sofro com esse desprendimento. Já voou café, papel molhado, roupa, panos e até um ovo, que não posso garantir, mas, pelo histórico, acho que veio diretamente do 61. Os passos dela pela noite são como de alguém vagando por uma rua desconhecida, é agoniante. Esses dias essa senhora estava brigando sozinha, dizendo palavrões aos montes, numa batalha campal com algum desconhecido. Os outros vizinhos, pouco compreensivos e muito impacientes, se agitaram numa gritaria desnecessária, mandando-a calar a boca, "sua velha louca". O silêncio veio logo depois, fiquei imaginando o sofrimento dela...

Ela dorme numa rede, e o barulho do vai e vem é como uma marcação de um relógio que sinto dentro de casa. Um dia tive que visitá-la. Junto com o pedreiro e alguns curiosos fomos verificar um possível vazamento no banheiro que estava atormentando minha vida (morar sozinho não é fácil, é preciso bater o escanteio, cabeçar e correr para fazer a defesa). Pela primeira vez entrei na casa 61, a falta de móveis me assustou. Só havia a rede, uma televisão em cima de uma cômoda, e nada mais. Ah, importante salientar, vivo numa kitnet, desses imóveis de 20m², onde sala e quarto são sinônimos e cozinha é um espacinho reservado no canto do quarto/sala. A casa dela é igual a minha. Ela só tem uma TV, uma cômoda e a rede.

Entramos na casa, sob total desconfiança da moradora. Enquanto visualizávamos o banheiro, ela ia proclamando impropérios para gente, em voz baixa, angustiante, inaudível. O banheiro era um caos! Minha mente, seletiva como só, apagou a imagem, mas o que não tem como esquecer era a maneira como ela tratava o vazamento que, pelo visto, já se instalara há tempos. Ela abusou do uso de massa branca, vedando passagens da água no banheiro. O canto das paredes estava branco e encharcado, lógico que a água tinha que jorrar... na minha casa.

Enquanto descíamos as escadas, o faxineiro tentava me explicar: - Essa mulher é maluca, vive aí sozinha... Silenciei. O vazamento foi consertado, o trabalho começou lá no 61 e terminou no meu apartamento, dias depois. 

Os barulhos diários dessa senhora são melancólicos, perdidos como seu olhar, mas, talvez ela não saiba que, de alguma forma, essa sua solidão me faz companhia. A rede balança nos meus ouvidos, meu varal recebe os lixos de lá de cima, mas, ainda sim, consigo sentir que pelo menos ela ainda está viva e que tem alguém, literalmente, atento aos seus passos.

Nesse momento, ela parece balançar na rede como uma criança, tamanha velocidade que o barulho sugere.

3 comentários:

Emilio Lanna disse...

Muito bom Carlinhos! Achei o texto super descritivo. Parecia que vivenciei todas as coisas junto com você! E que solidão dessa senhora e desse escritor heim? Grande abraçø!

Carlinhos Horta disse...

Valeu, Emílio.

Obrigado.

Morar sozinho é de um aprendizado...

Abraço.

Anônimo disse...

Parabens, lindo texto.

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